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428 Iracema Munarim, Rogério Santos Pereira, Gilka Girardello
O programa Profissão Repórter (GLOBO, 22/05/ enfrentam-se sérios problemas com as desigualdades
2013)12 abordou os problemas enfrentados por centenas de todo tipo, um dos maiores desafios da Europa atual é
de agricultores nordestinos que haviam contraído dívidas manter a equidade campo-cidade, especialmente porque
pelo menos cinco anos antes para investir em plantações é nas cidades que as diferenças socioeconômicas da
e criação de gado. O empréstimo no Banco do Nordeste população se tornam mais visíveis – crise econômica
possibilitou que comprassem ração, sementes e material e aumento das taxas de desemprego; imigrantes, suas
para fazer cercas. Mas, com a seca, eles perderam tudo: culturas e línguas diferentes, etc. (CAZELLA, 2008).
dos rebanhos de gados às pequenas plantações. Os
empréstimos, que variavam entre 5 mil e 20 mil reais para Esses breves exemplos ajudam a manter a atenção
cada um, haviam se convertido em dívidas com valores aos riscos de uma transposição direta entre os contextos
mínimos na casa dos 100 mil reais. A preocupação de europeu e brasileiro. Ao se lidar com propostas de tradução
um agricultor entrevistado e que não sabia que deveria intercultural e buscar aproximações entre as escolas de
pagar seu empréstimo no prazo de três dias – ele não tinha isoladas e as escolas do campo, precisa-se considerar
acesso aos jornais para ler as notificações oficiais e ainda que ainda não foram superadas questões essenciais
era analfabeto – não era apenas a penhora de seus poucos à sobrevivência, como a falta de água, de alimento,
bens, mas a maneira como conseguiria comida para sua de educação, de saúde, de transporte, de dignidade.
filha no final de semana. Assim, ao deslocar o foco das comparações entre duas
realidades muito diversas para construir traduções entre
Outro exemplo citado no mesmo programa: dezenas elas, procurou-se identificar o que se pode aprender com
de caminhões pipa retiram água diariamente do Rio as experiências do outro: o que, então, pode-se aprender
São Francisco para distribuí-la a uma comunidade do com o cenário apresentado no isolamento das ilhas do sul
estado vizinho, o Piauí. Essa água, imprópria para beber, da Itália e traduzir para o contexto educativo brasileiro?
é vendida a 2 reais o galão e é usada pela população
para a preparação de alimentos. A cozinha de uma das Como acontece no Brasil, a situação atual de
entrevistadas não tem torneira porque a cidade ainda não crise na Itália, mais especificamente no sul do país,
tem água encanada. tem impulsionado em seus moradores a busca por
soluções para os problemas nos centros urbanos, onde
O mesmo caminhão que leva água para a comunidade tradicionalmente ficam concentradas as oportunidades de
faz entregas para os órgãos da prefeitura. Os entrevistados trabalho e estudos. Na busca por melhores condições de
responsáveis afirmam que a água é para limpeza, para lavar vida, os moradores do arquipélago de Egadi abandonam
chão e carros. Mas esta é a mesma que chega às escolas e hoje as suas ilhas. Se um território perde cada vez mais
é a única que as crianças têm disponível para matar a sede seus habitantes, o patrimônio cultural e natural local
durante o período de aulas. Enquanto isso, professores e fica à mercê de investimentos corporativos voltados
servidores bebem de um galão de água mineral, o que, à exploração turística e imobiliária. Se as ilhas ficam
segundo o diretor da escola que dá entrevista (enquanto repletas de turistas durante a temporada de calor (julho
bebe da sua água potável), é “constrangedor”, visto que a setembro), no resto do ano ficam vazias, sofrendo
as crianças consomem a água imprópria. O prefeito da as consequências de uma lógica de mercado que não
cidade afirma que sabe da péssima qualidade, mas diz valoriza a cultura local sequer durante os meses de maior
que não adianta oferecer água potável na escola porque lucro financeiro. E, se a população da ilha vai embora,
as crianças, ao chegarem a suas casas, irão beber a água obrigada a ceder a um jogo de forças de interesses globais
contaminada. em detrimento dos saberes locais, as escolas perdem seus
alunos – que vão embora das ilhas com suas famílias atrás
Ainda mais dificultada é a situação de quem mora da promessa de melhores condições de vida.
nas zonas rurais, como do estado do Piauí, aonde não
chegam caminhões pipa e ter água encanada não passa Essa dualidade em relação ao local, expressa pelos
de um sonho distante. As dezenas de quilômetros que próprios moradores que o veem ora como paraíso, ora
precisam ser transpostos diariamente para buscar água nas como subsistência, reforça uma dicotomia questionável
raras fontes que resistem à seca, como as demonstradas no entre campo e cidade, já que um não pode ser definido sem
programa de TV, tornam a vida ainda mais difícil. o outro. Para o mercado turístico, prevalece nas ilhas um
estilo de modernização (resorts, conjuntos residenciais de
Já no meio rural de um país como a Itália, em virtude luxo, pacotes de viagem) que é atrelado, curiosamente,
da ampla rede rodoviária e ferroviária, e das menores às tradições que esse mesmo mercado descaracteriza,
distâncias quando comparadas a um país de dimensões estereotipa, reifica, operando mediante lógicas de valor
continentais como o Brasil, os agricultores possuem e de rentabilidade.
trânsito facilitado entre suas propriedades e os centros
urbanos, além de água e esgoto tratado, luz elétrica As turmas das poucas escolas locais estão cada vez
e acesso à saúde e à educação. Enquanto no Brasil mais reduzidas. Algumas delas possuíam em 2012 apenas
Educação (Porto Alegre, impresso), v. 38, n. 3, p. 424-433, set.-dez. 2015

