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Educação, território e tecnologias digitais	                                427

atum do mundo, espécie cada vez mais rara nos oceanos.       disposição das crianças para que estudem na cidade em
A atividade com o atum nos mares do arquipélago de           vez de oferecer-lhes uma escola próxima de suas casas e
Egadi, apesar de sazonal, era extremamente elaborada e       dentro de seus contextos de vida, na Europa, a situação já
lucrativa, indo da pesca à produção industrial de conservas  estabelecida de oferecimento do ensino qualificado para
enlatadas. Do início da primavera, no mês de abril, aos      todas as crianças passa atualmente por transformações e
primeiros dias de junho, a pesca se valia do período         eventuais declínios nas políticas de educação.
de reprodução da espécie, momento em que cardumes
se aproximavam da costa siciliana ocidental. O ritual            As mudanças pelas quais a Europa passou, a partir do
da pesca era um momento único, ritmado pelos cantos          século XIX, como apresentado por Raymond Williams,
dos trabalhadores sobre seus barcos. Cantos solenes, de      tiveram reflexos significativos também nas atividades
alegria e de reza10.                                         pesqueiras das ilhas Egadi. Em seu livro O campo e a cidade,
                                                             Williams (1989) afirma que o surgimento do capitalismo
    Com a primeira guerra mundial e com a crise              não criou uma situação nova, mas reforçou algo que antes
econômica que se instituiu na Itália, deu-se início à        já existia. A exploração do trabalho, o desrespeito a outros
queda de um grande império pesqueiro. Na década de           seres humanos, o feudalismo, os conflitos, a tributação e
1970, a fábrica que processava o atum foi definitivamente    a lei da espada não são recentes. Tendo como referência
fechada, deixando centenas de famílias desamparadas. A       a perspectiva inglesa, o autor ressalta a importância de se
progressiva escassez tornou a pesca cada vez mais rara,      pensar a partir de uma época sem paralelo histórico em
e a última pesca de atum em Favignana foi registrada no      termos das transformações campo/cidade: a Revolução
ano de 2007. Em busca da preservação da memória local,       Industrial, que acabou por cunhar o capitalismo agrário e
a antiga fábrica desativada tornou-se patrimônio histórico   o desaparecimento do campesinato tradicional. Nas Ilhas
da região da Sicília, nos anos 1990, e, no ano de 2009, foi  Egadi, apesar de o processo produtivo ter passado por
transformada em museu11.                                     grandes transformações, migrando da pesca artesanal para
                                                             a constituição de uma produção fabril de conservas, o
    Entre os moradores das Ilhas Egadi, circulam as          poder foi mantido em poucas mãos.
narrativas de tempos prósperos que ficaram na memória
coletiva daquelas comunidades. Se antes a pesca era a            Problematizar, a partir do exemplo das Ilhas Egadi,
principal atividade econômica da região, hoje predominam     o contexto de transformações na sociedade europeia
o turismo e a especulação imobiliária de investidores        pode ser um caminho para melhor se compreender
estrangeiros. Se antes havia ofertas de emprego, hoje os     a especificidade dos processos de constituição e
moradores precisam se deslocar ao continente com suas        transformação da sociedade brasileira. Ao se buscar
famílias à procura de trabalho. A vida das mulheres que      um paralelo com outra realidade, podem-se identificar,
habitam a ilha é outro fator que merece ser destacado na     além das semelhanças entre os dois contextos (escolas
decisão pela partida das famílias ao continente. Numa        do campo e escolas de ilhas), as diferenças entre o Brasil
pequena comunidade em que perdura uma estrutura              e a Itália. E estas podem nos ajudar a refletir sobre as
familiar, onde os homens saem para trabalhar e as mulheres   perspectivas das escolas do campo em nosso país.
se ocupam dos afazeres domésticos, a migração tem sido
uma opção, ainda que velada, de busca por valorização do         Uma dessas diferenças diz respeito à contextualização
universo feminino diante da resistência a mudanças numa      de escolas isoladas e escolas do campo nas duas realidades.
cultura tradicionalmente patriarcal. Para muitas mulheres,   O contexto de isolamento de povos do campo, como o
a cidade é uma promessa de outra inserção na sociedade.      existente no Brasil, não possui correlação direta com a Itália
Hoje, os habitantes das ilhas são em sua maioria idosos,     e com os demais países da Europa Ocidental. Carrière e
que contam e recontam as histórias de um arquipélago         Cazella (2006), a partir do contexto rural francês, revelam
num tempo passado repleto de crianças brincando nas          que as formulações teóricas pioneiras sobre agricultura,
ruas e praças, escolas cheias, muito artesanato e pesca.     campo, território e desenvolvimento territorial sustentável
Se antes as escolas eram independentes, hoje elas            partem de uma realidade histórica diferente e com
perderam a autonomia, respondendo a uma coordenação          expressivos indicadores de desenvolvimento que ainda
centralizada no continente. E, se um dia elas possuíam       não se alcançou no Brasil. Não se pode negar queexistam
muitos alunos, hoje lutam para não ter de fechar as portas   ainda neste país latino-americano carências no meio rural
por falta de crianças. Assim como no Brasil, onde se         a serem supridas e necessidades básicas a serem atendidas
vive historicamente a contenção de gastos nas políticas      para sobrevivência digna da população. Dentre o grande
educacionais, a situação de crise no continente europeu      número de situações precárias encontradas no Brasil,
tem se refletido fortemente no corte de verbas públicas      descrevem-se aqui cenários retratados em um programa
para a educação na Itália. Se no Brasil encontram-           da televisão aberta que escolheu como pauta a maior seca
se dirigentes políticos que preferem colocar ônibus à        dos últimos 50 anos, afetando o Nordeste brasileiro no
                                                             ano de 2013.

Educação (Porto Alegre, impresso), v. 38, n. 3, p. 424-433, set.-dez. 2015
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